Nota do Leandro: Fala galera, público bacana do RB. Este texto que vocês começam a acompanhar a partir de hoje é uma experiência um pouco diferente dentro do site. "A semana das chilenas..." trata-se de uma pequena incursão dentro de um gênero que pode-se definir como jornalismo literário. A ideia é retratar uma "literatura não ficcional", um registro jornalístico, mas com uns toques dentro de elementos que geralmente são encontrados dentro da literatura, sacou? O estilo oscila de forma bacana entre o relato auto-biográfico e o romance. É um gênero que ficou bastante popularizado com autores como James Joyce (Ulisses) e George Orwell (Na pior em Paris e Londres). Não que eu esteja me comparando com eles, é claro. Eu nunca seria capaz de ter o bigode estiloso deles.
Espero que vocês gostem!
A semana das chilenas – e o sonho da
Vovó Dinossauro
A
faculdade de História me levou para vários caminhos interessantes até hoje.
Infelizmente, ainda pra nenhum que significasse dinheiro, mas isso é algo para
se resolver depois.
Um
desses caminhos interessantes desembocou na Faculdade de Medicina, que estava
criando um Centro de Memória e precisava de historiadores para tocar o negócio.
Isso foi no quarto ano da faculdade.
Agora,
uma comparação interessante para quem se interessa por jogos eletrônicos no
estilo “mundo aberto”, aqueles que têm uma cidade por onde você pode passear
com a sua personagem, geralmente cometendo delitos. Nesses jogos, até certo
ponto, você não pode conhecer determinadas áreas da cidade, que se encontram
bloqueadas. Conforme o tempo passa e você vai melhorando seu nível, as
barreiras nas pontes da cidade desaparecem e você vai para novos bairros,
vizinhanças ainda desconhecidas.
Minha
experiência foi mais ou menos assim. No quarto ano, fui trabalhar
na Faculdade de Medicina, que fica afastada de todo o resto do campus. Em todo
meu período até então na Universidade, eu nunca tinha passado mais do que uns
vinte minutos, totais, nesse lugar e agora, eu estava ali todos os dias. Como
se houvesse desbloqueado uma área nova do jogo.
Era
esse tipo de bobeira que eu ia pensando no ônibus, todas as manhãs, enquanto me
encaminhava para o trabalho.
Nos
anos anteriores, quando a Faculdade de Medicina era só mais uma paisagem pela
janela enquanto eu percorria o caminho sonolento até a minha própria faculdade, eu me
sentia um tanto incomodado.
Não
era agradável passar pelo hospital logo cedo. As pessoas, doentes das mais
variadas formas, se aglomeravam em filas enormes, esperando a chance de serem
atendidas. Pareciam pessoas sofridas. E pareciam estar desde sempre naquelas
filas, se apoiando umas nas outras, antes das sete da manhã. É uma imagem
horrível, mas o ônibus, nessas situações, era como um daqueles carrinhos de
safári, onde os turistas éramos nós, estudantes sadios, observando aquelas
pessoas tristes lá fora que nos devolviam, às vezes, o mesmo olhar curioso.
No
tempo em que eu trabalhei lá, detestei todas as vezes em que fui obrigado a
entrar no hospital por um motivo ou outro. Ver aquelas pessoas doentes sempre
me deu uma sensação terrível de impotência.
Mas
a vida continuava, porque, como eu havia aprendido, era necessário trabalhar
para se alimentar e sonhar para continuar vivo.
Eu
geralmente saía apressado do Centro de Memória para ir pegar meu ônibus para a
casa. O querido 724, que mereceria um livro só para ele. Nesses anos todos, é
curioso observar a relação de felicidade incontrolável que eu estabeleci com
certos números. Talvez seja um resquício de uma reação pavloviana, talvez seja uma piração minha, mas meu corpo costumava responder, de maneira impensada e com involuntária animação, à visão de determinadas sequências numéricas. Explico.
Quando
eu precisava passar horas e horas no Terminal esperando meu segundo ônibus para
voltar para casa (antes de descobrir que o querido 724 fazia sozinho o caminho
necessário), eu tinha sempre um momento de euforia. Era a alegria incomparável
que eu sentia quando lia, em luzes brancas contra o fundo escuro, aquele número
gordinho, bonito: 338. O número que significava casa, banho, descanso. O número
que significava o encerramento de uma jornada. Eu conversava com muita gente no
Terminal, conheci muitas histórias interessantes e muita baboseira também.
Algumas pessoas gostam de conversar enquanto esperam o ônibus. E eu gosto de
conversar com elas. Mas quando eu avistava, lá longe o 338 brilhando... Eu
esquecia rapidinho o sujeito da Costa Rica que estava me contando suas
impressões do Brasil ou a bixete que veio puxar papo. A visão do 338 encerrava,
definitivamente, o meu dia. Valeu, galera, agora só amanhã.
E
depois veio o 724. Era uma viagem menos solitária. Geralmente tinha algum amigo,
alguma paquera ou um conhecido qualquer no 724. Querido 724, com seu número
branco estampado contra o fundo vermelho...
Mas
como eu dizia, eu sempre saía correndo, apressado, para chegar a tempo no
ponto. E muitas vezes eu acabava perdendo o ônibus, seja porque ele decidia não
parar naquele ponto ou porque um de nós dois estava atrasado. De toda
forma, eu passava muito tempo parado no ponto e acabava conversando com várias
pessoas diferentes. E quando eu digo “diferentes”, é no sentido mais amplo da
palavra.
É
preciso entender uma coisa: num ponto de ônibus qualquer dentro da Universidade, você encontra pessoas diferentes mas que são, de um modo geral,
parecidas. Porque elas pertencem a um mesmo universo, mais ou menos. Todas tem
algum tipo de relação com a universidade. Geralmente, alunos.
Agora,
num ponto de ônibus dentro da universidade, mas perto de um hospital, você encontra
qualquer tipo de pessoa mesmo. Porque
qualquer tipo de pessoa precisa de hospital. E teve a semana das chilenas.
Eu
havia perdido o ônibus, constatei. Ele estava demorando demais. Pluguei os
fones no ouvido, selecionei um Nerdcast
e fiquei tranquilamente sentado no meu lugar, esperando.
E
então um ônibus parou à minha frente e desceu uma senhora. Sua figura era
curiosa sob qualquer aspecto. Ela congelou a minha atenção.
A
primeira impressão que eu tive, a primeira ideia que me veio à mente, era que
ela se parecia com uma bruxa clássica de histórias infantis, só um pouco mais
gordinha. A senhora era muito branca e tinha cabelos louros muito desgrenhados. É como se seu cabelo fosse um grande exemplar de macarrão farfalle, aquele famoso "gravatinha", colado sobre a cabeça. Acho que dá para imaginar.
Ela descia as escadas do ônibus gingando, como quem faz muito esforço. Trazia consigo
uma mala grande. Sandálias espremidas em pés inchados, com meias marrom até o joelho. Uma saia apertada em
volta de sua cintura redonda. Quando olhou para mim, deu um sorriso largo e eu
pude ver uma verruga grande ao lado do nariz. Bem bruxinha mesmo.
Saí
do meu transe um tanto envergonhado. Geralmente eu teria ajudado a senhora a
descer com a mala, mas a sua visão realmente havia me cativado de uma maneira
meio estranha.
A
mulher se sentou ao meu lado, bufando e sorrindo. Arrumava os cabelos
freneticamente enquanto olhava para os lados. Como não havia mais ninguém perto
o suficiente, resolveu conversar comigo. Tive uma certa dificuldade de entender
seu portunhol carregado e sua fala excessivamente rápida.
“Me
desculpa?”, perguntei, retirando o fone dos ouvidos.
“Eu
disse que eu sou chilena, sabe?”, ela me respondeu com o sotaque que não
saberei reproduzir aqui. Cada fala veloz dela levava alguns segundos se
decodificando em meu cérebro.
E
então ela começou a conversar comigo. Ou não, porque na verdade, ela não se
interessava muito pelas minhas respostas e simplesmente continuava seu monólogo
insensato.
Descobri
que ela estava fazendo algum tipo de tratamento de pele no hospital. Que
cresceu no Chile, mas precisou vir ao Brasil por qualquer motivo escuso.
Descobri tudo sobre a vida daquela completa estranha em pouquíssimo tempo. Logo
as pessoas começaram a se reunir no ponto e a se divertir, secretamente, com o
espetáculo do meu desespero de não entender o que ela dizia. Em algum momento
ela começou a se auto denegrir, provavelmente emulando alguma coisa que haviam
dito para ela, não sei. A mudança no tom de voz poderia indicar isso, mas era muito difícil compreender sua intenção. Eu estava entrando em pânico. Ela dizia como os outros
a chamavam de “gorducha, cabelo de xixi”. E a todas essas, ela apertava a
própria barriga e puxava os próprios cabelos. Eu estava assustado.
Até
que ela começou a falar dos filhos. Ah, ela falou dos filhos dela. Quatro,
todos homens.
“É
uma tristeza só ter filhos homens, não é?”
“É?”,
eu respondi, pensando nos meus dois irmãos.
“E
sabe por que? Porque homem veio para o mundo só para sofrer. Isso mesmo!
Sofrer! E sabe nas mãos de quem ele sofre? Da mulher!”
Esta
última frase foi dita com tanta força que eu até recuei um pouco no banco. A chilena
amalucada começou a se empolgar com o público que se reunia para ouvir suas
teses. Ela olhava para os lados e gesticulava, encarava a todos, contente. Mas
sempre voltava para mim. Ela estava gostando do público. O stand up do manicômio.
“Porque
mulher não presta”, continuou. “Mulher é tudo ruim e manipula. Isso mesmo!
Mulher manipula e manipula. A mulher não quer nada sério, só quer manipular.
Dar o golpe, é isso que toda mulher quer. Oh, meu Deus, e como eu sofro por ter
quatro filhos homens... quatro bananas, que vão ser iludidos por uma mulher!”
“Porque
eu vou te contar como as coisas funcionam. A mulher quer dar o golpe da
barriga. Quer apenas engravidar para segurar o homem que vai sustentar ela. É
assim que o mundo funciona, rapaz. Toma cuidado!”
Enquanto
a conversa estava apenas nesse absurdo divertido, por força das circunstâncias,
eu não me preocupei muito. Estava entrando em pânico, mas era um pânico
controlado. A curiosidade do ratinho encantado pela imponência da serpente que ainda não sabe das presas escondidas.
Até
que as coisas começaram a ficar um pouco sinistras.
“E
existe muita violência hoje em dia, não existe?”
Que
mudança de assunto!
“Antigamente,
eles apenas matavam. Era normal, não é? Matavam apenas e estava tudo bem. Mas
hoje, eles matam com requintes de crueldade. Hoje eles não apenas matam, mas
eles matam e picam em pedacinhos!”
Esta
última frase foi gritada na minha direção, os olhos arregalados olhando para os
meus. E eis que o ratinho descobre o que está acontecendo.
“Matam.
Cortam em pedacinhos. E botam fogo!”
Sempre
grifando com um grito a última etapa do requinte de crueldade.
“Matam.
Cortam em pedacinhos. Botam fogo. E dão os restos para os cachorros comerem! E
depois pegam o que sobrar e jogam no rio! Hay
crueldade, hay muita crueldade!”
“E então”, ela concluiu. Havia uma linha de
raciocínio ali! “E então quando a mulher dá o golpe da barriga no homem e ele
mata, pica em pedacinhos, dá pros cachorros comerem e tudo o mais... você pode
dizer que o homem está errado?”
Eu
pisquei, um pouco incerto se eu tinha realmente ouvido o que eu acabara de
ouvir. Há que se dizer que aquele caso do goleiro do Flamengo havia acabado de vir à público e estava bastante recente. Pelo menos
na cabeça da minha colega de ônibus.
A
chilena olhava, orgulhosa, as outras pessoas no ponto. Elas também estavam
assustadas. E com razão.
E
neste momento, o pior quase aconteceu. Existe uma mulher muito simpática que
sempre pegava o ônibus comigo. Era uma senhora muito bem humorada, que sempre
me chamava de “rapaz do sorriso bonito”, que passava cumprimentando a todos.
Uma senhora negra.
Quando
a chilena terminou sua explicação maluca, essa senhora se aproximou de nós,
cumprimentando a todos. Ela acabara de chegar ao ponto e não tinha apreciado o
espetáculo. Cumprimentou-me e se sentou no espaço vago entre a chilena e eu.
A
chilena olhou a novata com curiosidade. Eu pude ouvir seu cérebro formulando
algum novo disparate para dizer. Eu juro que ouvi as pequenas engrenagens aquecendo e rodando.
E
então a chilena, prendendo a respiração, tentou ser discreta e sussurrar para
mim, por trás da senhora que acabara de se sentar.
“E
esses negros de hoje em dia, hein?”, ela disse no sussurro mais alto da
História.
Neste
exato instante eu entrei em pânico. Congelei da mesma maneira que meu amigo
João Luigi no assalto do fã do John Lennon.
Felizmente,
a senhora era muito educada para levar a conversa adiante. E também, a visão do
724 aparecendo logo ali fez o sangue voltar a correr nas minhas veias.
Despedi-me
rapidamente e entrei no ônibus.
Escutei
uma risadinha atrás de mim enquanto eu me aproximava da catraca.
Era uma
senhorinha, muito parecida com a Vovó Dinossauro daquele programa antigo. Ela
havia escutado toda a conversa da chilena e em um ou dois momentos, até havia
tentado interromper o falatório para me salvar. Não havia conseguido, mas eu
apreciei o gesto.
E
Vovó Dinossauro se sentou antes da catraca e sorriu para mim.
“Algumas
pessoas só querem conversar, filho. E você foi muito gentil ao dar isso para
aquela maluca”
Eu
fiquei acabrunhado e só afastei aquilo com um movimento da mão.
“Eu,
por exemplo...” e lá se foi a Vovó Dinossauro me contar sua vida. Eu já estava
anestesiado aquele dia, nada mais iria me surpreender.
Mas
surpreendeu. A Vovó Dinossauro era uma pessoa realmente interessante. Contou-me
como sua juventude foi difícil com um casamento que ela não quis. Como ela
sempre quis estudar, mas o marido não deixou. Como seus anos foram repletos de
frustrações.
Mas
as coisas mudaram. Ela estava agora fazendo um curso avançado de espanhol. Para
a pós dela em Linguística. Ah, ela não havia me contado que se formara em
Linguística? Pois é, se formou. E agora esse curso.
E
não está bom ainda, ela me disse. Seu próximo passo seria trabalhar na TV. E
ela iria conseguir, eu ia ver. Não duvidei.
“Mas
então o seu marido concordou com a senhora indo para a faculdade?”, eu
perguntei.
“Ah,
meu querido...”, ela respondeu com um sorriso. “Ele não pode mais me impedir de nada". E, se aproximando um pouco, concluiu, com uma piscadela: "Ele já não está mais aqui.”
Fiquei
com medo de perguntar onde ele estava e a Vovó Dinossauro responder, com seu
sorriso e serenidade de Vovó Dinossauro que ele tinha sido morto, cortado em
pedaços, dado aos cachorros...
Ponto Final
Em Watchmen, clássico dos quadrinhos escrito por Alan Moore, existe
uma personagem, Hollis Mason, o Coruja original. Na história, há um exercício de metalinguagem. Alan Moore criou um livro
dentro do livro, uma biografia escrita por Hollis. E o antigo herói abre seu
texto dizendo que, seguindo um antigo conselho que recebera certa vez, iria
começar suas memórias narrando sua lembrança mais triste que conseguia se
lembrar. E que daí para a frente, tudo ficaria mais fácil.
Eu gostaria de fazer o
contrário e encerrar este texto com uma lembrança triste que eu tenho. O fim da
semana das chilenas.
No dia seguinte àquela
loucura toda, lá estava eu no ponto novamente. Sentado, com o inseparável Nerdcast no ouvido, olhando apreensivo para os lados. Cachorro mordido por cobra tem medo de mangueira. Foi quando essa senhora
se senta ao meu lado. Só havíamos nós dois no ponto. Ela sorriu daquela maneira
que só pode significar que a pessoa quer conversar. Uma escaramuça de simpatia, especulando se há a reciprocidade. Sorri também. E por que não? Ela então cumprimentou com aquele
sotaque que eu bem conheci na véspera.
Contou que veio falar
comigo porque sempre me via no 724. Sim, nós tomávamos o mesmo ônibus. Eu
parecia ser simpático. Ao longo do tempo, descobri algumas pessoas, do mesmo ônibus, que se aproximaram pelo mesmo motivo. Eu parecia simpático, ou então o livro que eu lia parecia interessante ou qualquer coisa no meu desajeito para escrever com o veículo em movimento despertava alguma empatia. Às vezes nós nos acostumamos tanto ao papel de coadjuvante no mundo que não imaginamos o efeito que podemos causar nas pessoas à nossa volta.
Ela tinha um certo
brilho nos olhos que me fazia acreditar que se tratava de gratidão. Sensação
estranha para se ter. Havia também ali uma animação mal contida. Ela gostava de
falar e fazia isso com excitação e cuidado. Como se tivesse medo de que eu, a
qualquer momento, me levantasse e partisse. Falava com calma ponderada para eu não me
perder no sotaque. E ouvia com atenção quando era a minha vez de falar.
Ela disse que nasceu no
Chile e teve três filhos. Muito parecida com a procedência da outra chilena,
mas a semelhança parava aí. Logo cedo ficou viúva e se mudou com os filhos para
o Brasil. Para sustentar a família, arrumou um bico como
enfermeira/acompanhante de uma senhora. Um trabalho que comprometia quase 24
horas de seu dia, quase 7 dias por semana. Mas era só por um tempo, até
conseguir um emprego melhor.
Quase 20 anos se
passaram nessa rotina. O trabalho temporário se transformou em sua vida. Ela
criou os filhos mas não os viu crescer. Viveu em função de uma estranha. Nunca
mais namorou ou se casou. Nunca arrumou amigos no Brasil.
“E agora estou aqui”,
ela disse enquanto afastava um pouco a gola da blusa para revelar um cateter.
“Câncer de mama. O médico disse que o tratamento não é garantido, mas mesmo
assim eu estou fazendo. Três vezes por semana, toda semana”.
Eu não soube o que
dizer, então disse o básico.
“Eu... sinto muito.”
“E por quê? Eu nunca
tive tanto tempo livre para mim mesma”, respondeu, animada.
Aquela conversa
realmente me afetou, por muito tempo. Que tipo de vida aquela chilena não deve
ter tido. Eu me senti incomodado pela história. Eu não saberia mais o que dizer
para ela. Confesso, sem qualquer orgulho, que passei muito tempo pegando o 724
em um outro ponto para não cruzar com a mulher. Eu não saberia mais o que nós
poderíamos conversar. Não soube o que dizer. Eu estava à frente de um caso sem procedência para mim. Minha mania de colecionar histórias por aí, depois narradas ou então para sempre sepultadas, de certa forma me acostumou a ter contato com o sofrimento, a alegria, a intimidade das pessoas.
Mas eu nunca, em nenhum momento, havia conhecido caso semelhante. Pude só imaginar seu pesar, mas a simplicidade e a franqueza de seu otimismo destoou de qualquer lógica que eu pudesse compreender. Eu estava em terreno distante das minhas referências. E, logo, eu me senti envergonhado, pequeno. Segui a minha vida como sempre, encontrei meus amigos e almocei com a minha família como se nada tivesse acontecido. Só que aconteceu.
Porcaria de escritor que eu quero ser, achando que conheço qualquer coisa sobre as pessoas e apanhado assim, de repente. Alienígena do sentimento dos outros.
De longe, me esquivando
dela no ônibus, eu acompanhei a mulher. A vi nos três dias por
semana, indo alegre para o hospital, conversando com quem quisesse ouvir. Vi
seus cabelos ficarem cada vez mais curtos, até a cabeça ser coberta por um
lenço. Vi seu corpo emagrecer. Até o dia em que não a vi mais.
Me lembrei das palavras
da Vovó Dinossauro. Algumas pessoas só querem conversar.
(
)# 4
Eu precisava descer no
próximo ponto e correr para dentro do Terminal. Eu não gostava de tomar aquele
ônibus.
Quando chegávamos perto
do último ponto antes do meu, a família foi para a porta de saída. A única do
veículo. O menino não parecia estar muito bem, mas a mãe ignorou e o pai
realmente não parecia se importar. Quando a porta se abriu, o garotinho não se
segurou e despejou todo o almoço recém comido nos degraus. A mãe o puxou pelo
braço e a família desceu.
Que droga. O próximo
ponto era o meu e não teve jeito. Precisei ir para lá. Se ao menos o garoto
tivesse esperado mais um segundo e descesse primeiro...
Lá estava eu. Encarando
o almoço da criança que se espalhava sem nenhuma graciosidade pelos degraus.
Fazer o quê. A vida é assim. Ela não termina no ápice e, certamente, não espera o momento certo para dar qualquer lição. As coisas simplesmente acontecem. A vida simplesmente termina.
Que maneira mais
deprimente de encerrar uma viagem de ônibus tão bacana.
Fim
*******************************
Obrigado, galera, por todo mundo que embarcou junto nesta viagem! :o)
Leandro
Fim
*******************************
Obrigado, galera, por todo mundo que embarcou junto nesta viagem! :o)
Leandro
ficou muito bom, jovem
ResponderExcluirSuerte
Você poderia ao menos ter esperado para publicar em uma semana que eu não estivesse tão deprimida.
ResponderExcluir"Fazer o quê. A vida é assim. Ela não termina no ápice e, certamente, não espera o momento certo para dar qualquer lição. As coisas simplesmente acontecem."
Muito legal!
ResponderExcluir