Nota do Leandro: Fala galera, público bacana do RB. Este texto que vocês começam a acompanhar a partir de hoje é uma experiência um pouco diferente dentro do site. "A semana das chilenas..." trata-se de uma pequena incursão dentro de um gênero que pode-se definir como jornalismo literário. A ideia é retratar uma "literatura não ficcional", um registro jornalístico, mas com uns toques dentro de elementos que geralmente são encontrados dentro da literatura, sacou? O estilo oscila de forma bacana entre o relato auto-biográfico e o romance. É um gênero que ficou bastante popularizado com autores como James Joyce (Ulisses) e George Orwell (Na pior em Paris e Londres). Não que eu esteja me comparando com eles, é claro. Eu nunca seria capaz de ter o bigode estiloso deles.
Espero que vocês gostem!
Give Peace a chance
Depois
da formatura no Casarão, o Solano foi o primeiro a dar o próximo passo na vida.
Novo ainda ele conseguiu alugar um apartamento no Centro, que ele mobiliou com
uma cama, um guarda-roupa e um colchão no chão. A situação, claro, depois
melhorou com o tempo, mas nos primeiros dias, este cômodo pobremente decorado
era o ponto de encontro oficial dos amigos. Lugar para beber umas cervejas,
lembrar os velhos tempos – ainda recentes, à época, mas nós queríamos ter o que
lembrar – e conversar por horas a fio.
Desde
a festa na outra cidade, que culminou com a longa caminhada do sítio até o
ponto de ônibus, nós não tínhamos nenhum evento. As nossas vidas começavam a
ficar cada vez mais sérias e o tempo, cada vez mais escasso.
Acontece
que o Solano arrumou uma namorada séria, que passou a dividir o pequeno apartamento
com ele. E agora, é importante ressaltar algumas coisas sobre o funcionamento
do Universo. Há, isto é certo, uma regra que deve sempre ser respeitada:
nenhuma namorada é séria o bastante até passar pela aprovação do grupo de
amigos. E com a garota não foi diferente.
Ficou
marcado então um evento para a sexta à noite. Os amigos reunidos para uma
reunião informal, onde as piores histórias seriam contadas. O Solano seria
miseravelmente destrinchado em frente à garota. Nenhum vexame escaparia incólume.
Nenhuma vergonha seria esquecida. Prova de fogo mesmo, sabe? Se a menina
sobrevivesse a isso, o casal poderia pensar em casamento.
A
noite foi um sucesso, com sanduíches, drinques diversos – o Solano, que já
trabalhou com quase tudo que é possível imaginar, àquela época fazia uns bicos
como barman – e o nosso amigo João
Luigi escapando vez ou outra para dar uma espiada no último capítulo da novela.
João Luigi era muito noveleiro e não poderia deixar de saber o final da Flora,
aquela sacana que tanto atormentou a Donatela. E quanto ao casal da noite...
mais feliz do que nunca. Parece que deu certo. Estão juntos até hoje.
Como
já estava tarde e nenhum de nós se animou a ir pegar um ônibus na madrugada do
centro da cidade, demos um jeito de acomodar todo mundo por ali mesmo.
Na
manhã seguinte, acordamos todos muito cedo. Enquanto a namorada do Solano ainda
dormia, fomos todos tomar café da manhã num quiosque perto dos pontos de ônibus
do Mercado Municipal. A mãe de uma amiga nossa fazia fogazza por lá – e ainda faz, na feira hippie do Centro de Convivência; vale a pena conferir! (Jabá!).
Nada como uma massa frita com presunto e queijo e Fanta para começar o dia! O desjejum
dos campeões!
Após
o saudável pequeno almoço, o Solano retornou para seu apartamento, o Erwin
ficou lá pelo Mercadão mesmo e eu acompanhei, ainda um pouco sonolento, o João
Luigi até a Prefeitura, onde nós pegaríamos nossos respectivos ônibus.
É
sempre uma experiência curiosa andar pelo centro da cidade num sábado de manhã.
Estava realmente cedo, naquelas horas do dia nas quais você geralmente não está
planejando levantar da sua cama e você imagina que qualquer pessoa sensata está
fazendo o mesmo. Mas não é assim que funciona.
As
ruas já estão ganhando movimento. As pessoas caminham para lá e para cá com
suas expressões neutras e os pontos de ônibus estão apinhados de pessoas
cuidando de suas próprias vidas. Para onde será que elas estão indo tão cedo?
Ou será que já estão voltando? O sábado de manhã tem aquela luz toda
particular, clarinha, uma textura agradável. Mesmo com movimento nas ruas,
existe um certo silêncio. O sábado de manhã é agradável, promissor: é um dia
inteiro de possibilidades, o início feliz do fim de semana. Que costuma morrer
na luz fraca, amarela e triste do domingo à tarde, lembrando que a segunda está
logo aí. Mas o sábado de manhã é feliz, meu momento preferido da semana. No
qual nada pode dar errado.
Certo?
Estávamos
na Prefeitura, o João Luigi e eu. Várias, eu repito, existiam várias pessoas
próximas de nós, em seus silêncios contemplativos. Ele não precisava vir direto
para nós dois.
Mas
veio. Cambaleante, com um olhar desconfiado. Torto. Talvez ele estivesse vendo
o mundo torto e o ombro caído fosse sua maneira de compensar. Talvez a noite dele ainda não tivesse acabado.
O
homem parou na nossa frente e olhou bastante para nós dois. João Luigi e eu nos
esforçando para ignorar o olhar. Pensou por um momento e se aproximou.
Todo
mundo que já viveu numa cidade relativamente grande já passou por coisa
semelhante. O nosso assaltante do dia veio com aquela história mansa,
veladamente ameaçadora, que já não convence mais ninguém. O equivalente
criminoso ao velho “não é você, sou eu” dos términos de namoro. Você conhece a
ladainha.
Ele,
veja só, tinha acabado de sair da prisão, mas, sabe como é, a vida é dura,
ninguém dá emprego, ele precisava continuar assaltando para viver, etc e tal.
Ele se aproximou do João Luigi, que não respirava há uns dois minutos e
mantinha os olhos vidrados na rua, e perguntou com quanto ele poderia
colaborar. Sim, colaborar. Nosso amigo tentava sair da vida criminosa e, vocês
hão de concordar, melhor pedir que roubar.
Vendo
o estado de choque do meu amigo, pensei em intervir e falei qualquer coisa. O
nosso caro meliante olhou para mim e paralisou por um tempo. Algo parecia ter
se acendido em sua mente. Um brilho curioso passou por seus olhos e então ele
me perguntou:
“Você
conhece o John Lennon?”
Por
um instante eu não entendi muito bem o que ele disse. Processei a informação na
minha cabeça. Sério mesmo que o assaltante queria conversar sobre Beatles
comigo?
“Claro,
conheço. Beatles”
“E
o que você acha dele?”
Lá
estava. Seria uma pegadinha? Ele me olhava sério. Queria mesmo saber a
resposta. Seria o nosso assaltante um fã dos Garotos de Liverpool ou muito pelo
contrário? Não era possível saber o que ele queria que eu respondesse. Gente
assim, bem... gente assim matou John Lennon.
“Eu...
gosto muito dele?”, resolvi arriscar. O homem fechou os olhos e anuiu com a
cabeça.
“Grande.
Grande homem, não é mesmo? Um poeta”
Ufa.
“Sim. Grande homem”. O João Luigi ainda olhava para a rua, em choque.
“Sabia
que você se parece com ele? Olhei para você... e vi uma coisa do grande Lennon”
É
importante ressaltar que, na época, eu ainda estava naquele momento em que você
sabe que em breve vai precisar de um emprego de verdade, carteira assinada.
“Mas não hoje”, eu pensava, e me dava ao luxo de ter toda a esquisitice de fim
de adolescência que eu podia. O que, no meu caso, significava me vestir com um
moletom verde e velho e usar o cabelo e a barba o mais longo que era possível.
O
Mundo ia ter, bem, ia ter todo o tempo do mundo pra me fazer crescer e integrar
aquela coisa chata que é a vida adulta. Mas não hoje, eu pensava!
Felizmente
o nosso assaltante era um fã da fase final do John Lennon e o meu visual,
pontuado pelos óculos, despertou um pouco de compaixão embalada por iê iê iê.
Se eu usasse terno e cabelo de franjinha mop-top¸
esta história poderia ter tido um desfecho bem diferente.
“Poxa”,
foi tudo que eu consegui dizer.
“Um
poeta e um grande homem. Você é um grande homem como ele?”
“Quem
me dera”
“O
que o Lennon disse sobre a paz? Você sabe? Era para dar uma chance para a paz,
não era?”
“Sem
dúvida. É isso que ele disse. Aliás, era só o que ele queria, sabia? Paz. Paz
para todos os homens. Sem violência. É, isso aí. Paz. Paz.”
O
nosso assaltante poeta me encarou, um olho meio fechado por uma careta
involuntária. Ficou nessa de me analisar por um tempo. Então, solenemente, pôs
a mão sobre meu ombro e disse
“Paz,
meu amigo. Ele queria paz. Você também quer. Quer saber? Vai, meu amigo. Vai na
paz. Você parece o John Lennon”
Eu
não sou inocente para recusar uma dádiva quando ela aparece. Olhei fundo nos
olhos do nosso amigo beatlemaníaco,
repeti “paz” mais uma vez e sem pensar, entrei no primeiro ônibus que apareceu.
Passaram-se alguns segundos até eu assimilar o que havia acabado de acontecer e
finalmente, achei graça. Me virei para comentar o inusitado da situação com o
João Luigi – que eu jurava que havia me seguido para dentro do ônibus – e tarde
demais, percebi que não havia ninguém ali.
Enquanto
a porta se fechava, olhei pela janela, para o ponto da Prefeitura. A imagem do
João Luigi, ainda olhando para frente, ia ficando cada vez menor enquanto o
ônibus se afastava...
( )#3
“Caramba!
Está tão escuro lá fora que eu nem percebi que não era meu ponto!”
A
menina sorriu, educada. Ela tinha total consciência de que aquele não era o meu
ponto, já que nós pegávamos o mesmo ônibus todos os dias, ida e volta. Mas ela
foi gentil o suficiente para não estragar a minha aproximação e não perguntou
por que é que, já que não era o meu ponto, eu não saía de frente da porta, onda
ela estava sentada, e não voltava para o meu lugar.
A
verdade é que nós nos víamos sempre, sorríamos um para o outro e nunca havíamos
passado disso. Mas naquela noite os deuses dos ônibus pareciam mais propensos a
derramar sua bênção sobre os reles mortais. E eu também estava ouvindo I’m your boogie man no radinho e estava
me sentindo meio... malandro. Sei lá.
Umas
duas semanas depois, nós estávamos namorando. No fim das contas não deu certo,
mas, de toda forma, foi uma bela história de ônibus.
E na semana que vem, não perca o próximo capítulo: "A semana das chilenas"!
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