terça-feira, 19 de março de 2013

A semana das chilenas - ou o sonho da Vovó Dinossauro

Nota do Leandro: Fala galera, público bacana do RB. Este texto que vocês começam a acompanhar a partir de hoje é uma experiência um pouco diferente dentro do site. "A semana das chilenas..." trata-se de uma pequena incursão dentro de um gênero que pode-se definir como jornalismo literário. A ideia é retratar uma "literatura não ficcional", um registro jornalístico, mas com uns toques dentro de elementos que geralmente são encontrados dentro da literatura, sacou? O estilo oscila de forma bacana entre o relato auto-biográfico e o romance. É um gênero que ficou bastante popularizado com autores como James Joyce (Ulisses) e George Orwell (Na pior em Paris e Londres). Não que eu esteja me comparando com eles, é claro. Eu nunca seria capaz de ter o bigode estiloso deles.
Espero que vocês gostem!

A semana das chilenas - ou o sonho da Vovó Dinossauro




A literatura

Eu gosto muito do George Orwell.

Acho que poucas pessoas no mundo tiveram uma vida tão plena de aventuras. Poucos foram os que viram o que ele viu, que buscaram realmente viver – ou viveram por força das circunstâncias – tantos eventos históricos, conheceram gente de toda espécie. Quem pode dimensionar o que se passava em sua cabeça? De que maneira as pessoas que ele conheceu influenciaram na criação de tantos clássicos da literatura?


Eu não sei como seria sentar com o George Orwell numa mesa de bar e escutar da sua boca todas as histórias incríveis que ele já viveu. Mas eu não preciso disso. Porque ele as escreveu. Escreveu de todas as maneiras que podia. Escreveu, escreveu, escreveu. Talvez, numa conversa informal, a Guerra Civil Espanhola ou os dias de mendicância em Paris não fossem tão emocionantes. Esta é a beleza da literatura.
Provavelmente 1984 seja um dos melhores livros que eu já li até hoje. Talvez o melhor. Eu não saberia descrever com justiça tudo o que se sente ao acompanhar, fielmente através de páginas e mais páginas, a angústia do pobre Winston. A revolta com aquele futuro passado que não é tão distante assim do nosso presente.


Cada linha do livro, cada pensamento mal expresso do protagonista que se exauria de vocabulário – mas puxava lá do fundo uma reação – cada tortura, cada absurdo daquele mundo. Tudo isso incomodava profundamente, como só uma grande obra literária sabe fazer.
Até chegar à última frase. Simples, bela e absurdamente terrível última frase do livro. O resultado daquelas horas incômodas e instigantes de leitura, o desfecho mais angustiante de todos os tempos. Só quem já leu o livro para compreender.

Se eu fosse sincero, diria que, ao chegar na última página, fui acometido por aquele desejo incontrolável que sempre dá de rolar os olhos para a derradeira linha e arranjar um “auto-spoiler. Foi o que aconteceu. Antes de ler todo o desenvolvimento da cena que se desenrolava, meus olhos foram atraídos como mariposas à lâmpada para aquela frase solitária que encerrava a história. Cinco palavras isoladas numa linha só para elas – pelo menos na edição que eu estava lendo.

Eu não prestei atenção a mais nada.

O meu ponto é: na realidade, eu quase estraguei uma experiência excelente. Foi um momento que passou e quase levou embora um grande evento. Agora, se alguém um dia me perguntar como foi, eu certamente não diria isso. Eu contaria como meus olhos foram vencendo cada palavra, numa escalada emocionante, até desaguar no melhor e pior encerramento de um livro que eu já tive o prazer de ler.

Não seria uma mentira; seria uma correção à realidade. Não anularia toda a experiência que eu de fato vivi. Certamente o George Orwell tomou algumas liberdades em suas narrativas ao registrar longos diálogos inteiros que ele havia tido horas, dias, meses atrás com outras pessoas. E nem por isso seus livros seriam mentirosos.

E esta é a beleza da literatura.

A literatura corrige a falta de emoção da realidade. Melhora os momentos que não são necessariamente ruins, mas que ficaram devendo aqui e ali. Ela transmite melhor o sentimento que de fato esteve presente, mas que não tivemos o pensamento afiado o suficiente para atinar na hora. A literatura acerta onde a vida faltou.

E existem poucas coisas tão legais quanto uma não ficção romantizada.

Vida de sardinha

Olhando em retrospecto, eu percebo como muitas das minhas histórias e experiências de vida foram embaladas pelo sacolejar desconfortável de um ônibus.

As lições e os aprendizados estão por aí, no convívio, nas conversas que você tem, nas pessoas que passam pela sua vida. Às vezes aquelas que ficam por anos, às vezes as que você conhece na duração de uma viagem pequena até sua casa. Existem dias que são como um episódio de Mad Men: você acha que não aconteceu nada, que foi apenas uma sobreposição de pessoas falando e falando sobre qualquer coisa que você julga irrelevante. Mas daí, no final do dia, enquanto você desfruta do curioso momento de privacidade da viagem de um ônibus, tudo parece fazer sentido. Tudo se coloca em perspectiva.

Às vezes eu realmente reclamo por não ter dinheiro para bancar um carro. Algumas coisas são mesmo mais simples quando você pode simplesmente entrar num automóvel e dirigir para onde você quer. Mas então eu penso a respeito da porção de experiências que eu já tive com essa vida de transporte público. As pessoas que eu conheci, os problemas pelos quais eu passei. As conversas que eu tive e o tempo para pensar, formular teorias, ler ou ouvir Nerdcasts. O quanto que eu já aprendi.

Todas experiências que eu não teria dentro de um carro. Talvez, se as coisas fossem diferentes, eu teria outras memórias igualmente grandes. Mas é importante saber desfrutar o que se tem.

Provavelmente eu já pensei tudo isso durante alguma viagem chata.

Os ônibus têm um diferencial, para mim. Por aqueles bancos, todos os dias, passam centenas de pessoas. Cada uma com suas idéias, seus pensamentos. Muitas, provavelmente, formulando teorias muito parecidas com as minhas. É uma grande chance de se observar um pouco da vida.

Quantas pessoas estão lá chateadas ou preocupadas. Talvez muitas felizes. Dentro de um mesmo carro, viajam centenas de mundos, cada qual complexo à sua maneira. Seria uma grande oportunidade de desbravar esses mundos e conhecer aqueles anônimos que preenchem as estatísticas da cidade, que estão indo compor a fila que você vai enfrentar à tarde ou servir o almoço que você vai comer com aquele colega ou dar a aula para o seu filho. Os ônibus transportam a cidade.

Sempre foi interessante observar as pessoas, imaginar seus destinos e, por vezes, interagir com elas. Os ônibus são uma extensão de nossas vidas, o convívio forçado com aquele vizinho que às vezes a gente ignora.

São, muitas vezes, o primeiro momento do dia no qual você pode ficar a sós com a própria cabeça e fazer o balanço do dia, pensar naquele trabalho, formular ideias. E são o entretenimento. Quantos romances de uma viagem só, sou obrigado a admitir, eu já não criei só com a visão daquela menina bonitinha que passou e se sentou no fundo? Quantos diálogos inteiros aquelas pessoas que nunca se viram, mas que o destino quis que se sentassem lado a lado, travaram? Pelo menos na minha cabeça?


(Continua...)
Quem compartilhar vai ganhar um fantástico abraço!!!
  • Share to Facebook
  • Share to Twitter
  • Share to Google+
  • Share to Stumble Upon
  • Share to Evernote
  • Share to Blogger
  • Share to Email
  • Share to Yahoo Messenger
  • More...

2 COMENTÁRIOS

  1. Até hoje eu luto com o desejo de ler a última linha de um livro. Hoje terminei um romance policial. Como minha irmã havia lido antes, eu perguntei se meu palpite sobre o assassino estava certo. E de fato estava. Eu me sabotei de um jeito diferente. Não li a última linha, mas dei um jeito de saber. Acho que todos os leitores passam por isso.
    Faz um tempo que li 1984, mas a linha final não saiu da minha cabeça. Até contei pra ver se eram cinco palavras. E de fato, na minha edição também.
    O ônibus. Quantas vezes eu conversei sobre nada com você mas que hoje eu vejo que soube muito mais de ti por aqueles breves minutos dentro do ônibus. Houve as paixões imediatas, o balanço do dia, o esboço de um texto que depois foi para o blog. Enfim... diria que o que você escreveu poderia muito bem estar escrito numa página de um diário meu, pois me senti em casa!

    Quando tiver mais, me avise.

    ResponderExcluir
  2. O "1984", do Orwell é fantástico... foi você quem insistiu quase um ano pra que eu lesse! Diria, facilmente, que um pouco da culpa é sua, pois não conseguia entender o tal do "ambiente de angústia" que você tanto falava. Porque era mais cruel do que qualquer ditadura, ainda mais se imaginária? Porque as ideologias do partido eram tão fortes que chocariam qualquer um que tivesse contato com elas? Como poderia o pobre Winston sofrer mais do que qualquer comuna perseguido por aí? Você não pôde me explicar, e por isso a demora. Mas, como você diz no texto, não tem como explicar essas coisas, o que lhe tira toda a culpa... hahaha! Belo texto garoto, parabéns! (e eu queria ler o livro que o O'Brian (é isso msm?) escreveu).

    ResponderExcluir

:) :-) :)) =)) :( :-( :(( :d :-d @-) :p :o :>) (o) [-( :-? (p) :-s (m) 8-) :-t :-b b-( :-# =p~ :-$ (b) (f) x-) (k) (h) (c) cheer

 
© Reduto Brainstorm
By BlogThietKe
Posts RSSComentários RSS
Voltar ao topo