Nota do Leandro: Fala galera, público bacana do RB. Este texto que vocês começam a acompanhar a partir de hoje é uma experiência um pouco diferente dentro do site. "A semana das chilenas..." trata-se de uma pequena incursão dentro de um gênero que pode-se definir como jornalismo literário. A ideia é retratar uma "literatura não ficcional", um registro jornalístico, mas com uns toques dentro de elementos que geralmente são encontrados dentro da literatura, sacou? O estilo oscila de forma bacana entre o relato auto-biográfico e o romance. É um gênero que ficou bastante popularizado com autores como James Joyce (Ulisses) e George Orwell (Na pior em Paris e Londres). Não que eu esteja me comparando com eles, é claro. Eu nunca seria capaz de ter o bigode estiloso deles.
Espero que vocês gostem!
A semana das chilenas - ou o sonho da Vovó Dinossauro
Eu gosto muito do
George Orwell.
Acho que poucas pessoas
no mundo tiveram uma vida tão plena de aventuras. Poucos foram os que viram o
que ele viu, que buscaram realmente viver – ou viveram por força das
circunstâncias – tantos eventos históricos, conheceram gente de toda espécie.
Quem pode dimensionar o que se passava em sua cabeça? De que maneira as pessoas
que ele conheceu influenciaram na criação de tantos clássicos da literatura?
Eu não sei como seria
sentar com o George Orwell numa mesa de bar e escutar da sua boca todas as
histórias incríveis que ele já viveu. Mas eu não preciso disso. Porque ele as
escreveu. Escreveu de todas as maneiras que podia. Escreveu, escreveu,
escreveu. Talvez, numa conversa informal, a Guerra Civil Espanhola ou os dias
de mendicância em Paris não fossem tão emocionantes. Esta é a beleza da
literatura.
Provavelmente 1984 seja um dos melhores livros que eu
já li até hoje. Talvez o melhor. Eu não saberia descrever com justiça tudo o
que se sente ao acompanhar, fielmente através de páginas e mais páginas, a
angústia do pobre Winston. A revolta com aquele futuro passado que não é tão
distante assim do nosso presente.
Cada linha do livro,
cada pensamento mal expresso do protagonista que se exauria de vocabulário –
mas puxava lá do fundo uma reação – cada tortura, cada absurdo daquele mundo. Tudo
isso incomodava profundamente, como só uma grande obra literária sabe fazer.
Até chegar à última
frase. Simples, bela e absurdamente terrível última frase do livro. O resultado
daquelas horas incômodas e instigantes de leitura, o desfecho mais angustiante
de todos os tempos. Só quem já leu o livro para compreender.
Se eu fosse sincero,
diria que, ao chegar na última página, fui acometido por aquele desejo
incontrolável que sempre dá de rolar os olhos para a derradeira linha e
arranjar um “auto-spoiler”. Foi o que aconteceu. Antes de ler todo
o desenvolvimento da cena que se desenrolava, meus olhos foram atraídos como
mariposas à lâmpada para aquela frase solitária que encerrava a história. Cinco
palavras isoladas numa linha só para elas – pelo menos na edição que eu estava
lendo.
Eu não prestei atenção
a mais nada.
O meu ponto é: na
realidade, eu quase estraguei uma experiência excelente. Foi um momento que
passou e quase levou embora um grande evento. Agora, se alguém um dia me
perguntar como foi, eu certamente não diria isso. Eu contaria como meus olhos
foram vencendo cada palavra, numa escalada emocionante, até desaguar no melhor
e pior encerramento de um livro que eu já tive o prazer de ler.
Não seria uma mentira;
seria uma correção à realidade. Não anularia toda a experiência que eu de fato
vivi. Certamente o George Orwell tomou algumas liberdades em suas narrativas ao
registrar longos diálogos inteiros que ele havia tido horas, dias, meses atrás
com outras pessoas. E nem por isso seus livros seriam mentirosos.
E esta é a beleza da literatura.
A literatura corrige a
falta de emoção da realidade. Melhora os momentos que não são necessariamente
ruins, mas que ficaram devendo aqui e ali. Ela transmite melhor o sentimento
que de fato esteve presente, mas que não tivemos o pensamento afiado o
suficiente para atinar na hora. A literatura acerta onde a vida faltou.
E existem poucas coisas
tão legais quanto uma não ficção romantizada.
Vida
de sardinha
Olhando em retrospecto,
eu percebo como muitas das minhas histórias e experiências de vida foram
embaladas pelo sacolejar desconfortável de um ônibus.
As lições e os
aprendizados estão por aí, no convívio, nas conversas que você tem, nas pessoas
que passam pela sua vida. Às vezes aquelas que ficam por anos, às vezes as que
você conhece na duração de uma viagem pequena até sua casa. Existem dias que
são como um episódio de Mad Men: você
acha que não aconteceu nada, que foi apenas uma sobreposição de pessoas falando
e falando sobre qualquer coisa que você julga irrelevante. Mas daí, no final do
dia, enquanto você desfruta do curioso momento de privacidade da viagem de um
ônibus, tudo parece fazer sentido. Tudo se coloca em perspectiva.
Às vezes eu realmente
reclamo por não ter dinheiro para bancar um carro. Algumas coisas são mesmo
mais simples quando você pode simplesmente entrar num automóvel e dirigir para
onde você quer. Mas então eu penso a respeito da porção de experiências que eu
já tive com essa vida de transporte público. As pessoas que eu conheci, os
problemas pelos quais eu passei. As conversas que eu tive e o tempo para
pensar, formular teorias, ler ou ouvir Nerdcasts.
O quanto que eu já aprendi.
Todas experiências que
eu não teria dentro de um carro. Talvez, se as coisas fossem diferentes, eu
teria outras memórias igualmente grandes. Mas é importante saber desfrutar o
que se tem.
Provavelmente eu já
pensei tudo isso durante alguma viagem chata.
Os ônibus têm um
diferencial, para mim. Por aqueles bancos, todos os dias, passam centenas de
pessoas. Cada uma com suas idéias, seus pensamentos. Muitas, provavelmente,
formulando teorias muito parecidas com as minhas. É uma grande chance de se
observar um pouco da vida.
Quantas pessoas estão
lá chateadas ou preocupadas. Talvez muitas felizes. Dentro de um mesmo carro,
viajam centenas de mundos, cada qual complexo à sua maneira. Seria uma grande
oportunidade de desbravar esses mundos e conhecer aqueles anônimos que
preenchem as estatísticas da cidade, que estão indo compor a fila que você vai
enfrentar à tarde ou servir o almoço que você vai comer com aquele colega ou
dar a aula para o seu filho. Os ônibus transportam a cidade.
Sempre foi interessante
observar as pessoas, imaginar seus destinos e, por vezes, interagir com elas.
Os ônibus são uma extensão de nossas vidas, o convívio forçado com aquele
vizinho que às vezes a gente ignora.
São, muitas vezes, o
primeiro momento do dia no qual você pode ficar a sós com a própria cabeça e fazer
o balanço do dia, pensar naquele trabalho, formular ideias. E são o
entretenimento. Quantos romances de uma viagem só, sou obrigado a admitir, eu
já não criei só com a visão daquela menina bonitinha que passou e se sentou no
fundo? Quantos diálogos inteiros aquelas pessoas que nunca se viram, mas que o
destino quis que se sentassem lado a lado, travaram? Pelo menos na minha
cabeça?
(Continua...)
Até hoje eu luto com o desejo de ler a última linha de um livro. Hoje terminei um romance policial. Como minha irmã havia lido antes, eu perguntei se meu palpite sobre o assassino estava certo. E de fato estava. Eu me sabotei de um jeito diferente. Não li a última linha, mas dei um jeito de saber. Acho que todos os leitores passam por isso.
ResponderExcluirFaz um tempo que li 1984, mas a linha final não saiu da minha cabeça. Até contei pra ver se eram cinco palavras. E de fato, na minha edição também.
O ônibus. Quantas vezes eu conversei sobre nada com você mas que hoje eu vejo que soube muito mais de ti por aqueles breves minutos dentro do ônibus. Houve as paixões imediatas, o balanço do dia, o esboço de um texto que depois foi para o blog. Enfim... diria que o que você escreveu poderia muito bem estar escrito numa página de um diário meu, pois me senti em casa!
Quando tiver mais, me avise.
O "1984", do Orwell é fantástico... foi você quem insistiu quase um ano pra que eu lesse! Diria, facilmente, que um pouco da culpa é sua, pois não conseguia entender o tal do "ambiente de angústia" que você tanto falava. Porque era mais cruel do que qualquer ditadura, ainda mais se imaginária? Porque as ideologias do partido eram tão fortes que chocariam qualquer um que tivesse contato com elas? Como poderia o pobre Winston sofrer mais do que qualquer comuna perseguido por aí? Você não pôde me explicar, e por isso a demora. Mas, como você diz no texto, não tem como explicar essas coisas, o que lhe tira toda a culpa... hahaha! Belo texto garoto, parabéns! (e eu queria ler o livro que o O'Brian (é isso msm?) escreveu).
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